35 ANOS DE UM CLÁSSICO DO CINEMA - NUM DUELO DE TITÃS DE UMA DAS MAIORES DUPLAS DO CINEMA DE TODOS OS TEMPOS - ''SOPHIA LOREN'' & ''MARCELLO MASTROIANNI''.
Um Dia Muito Especial / Una Giornata Particolare
Nota:
Anotação em 2010: Um Dia Muito Especial, que Ettore Scola fez em 1977, é uma obra-prima, um filme maior. É uma daquelas pérolas perfeitas, em que tudo, todos os componentes, estão no seu lugar exato, não sobra nada, não falta nada.
A idéia básica da trama é brilhante – assim como o roteiro, os movimentos da câmara, a fotografia, os figurinos, a direção de arte, a trilha sonora, e a interpretação magistral dos dois atores, os monstros sagrados Sophia Loren e Marcello Mastroianni.
A idéia básica da trama: no dia em que os ditadores da Alemanha e da Itália, Adolf Hitler e Benito Mussolini, se reúnem em Roma, diante de uma imensa multidão, 8 de maio de 1938, um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial, uma mulher e um homem se encontram pela primeira vez, no conjunto residencial em que moram, em um bairro de classe média da capital italiana.
Temos então aquela justaposição de um episódio da Grande História com uma pequena história de ficção, o macro e o micro, que costuma gerar grandes histórias, grandes filmes. E este aqui é um dos maiores de todos eles.
O filme abre com um daqueles cinejornais que, até os anos 60, passavam nos cinemas antes da apresentação do filme principal: cenas reais, em preto-e-branco, do primeiro dia da visita de Hitler a Roma. Um locutor, com aquele timbre típico dos filmes de propaganda governamental, chapa-brancas, usa todos os tipos de adjetivos grandiloqüentos e vazios que se usam nas propagandas governamentais, chapa-brancas. É um longo cinejornal, que deve beirar aí uns cinco minutos. Termina anunciando que, no dia seguinte, os dois líderes se encontrarão novamente para assistir a um gigantesco desfile cívico-militar, ao qual todos os romanos deverão comparecer.
Bandeiras nazistas desfraldadas, e um glorioso plano-seqüência
E então, quando passamos do cinejornal preto-e-branco para o filme em cores, vemos uma mulher desfraldar gigantescas bandeiras com a suástica nazista num conjunto de diversos prédios de apartamento.
Em seguida, há um magnífico, glorioso, espetacular plano-seqüência. A câmara vai mostrando um dos prédios, vai se aproximando da janela da cozinha de um apartamento – a cozinha do apartamento de Antonietta, a personagem de Sophia Loren. O plano-seqüência continua, sem corte algum: a câmara entra pela janela do apartamento e passa a seguir Antonietta. Ela está passando roupa; pega uma xícara de chá e vai andando pelo apartamento, acordando os filhos – um, dois, três, quatro. Perdi a conta do número de filhos. Antonietta depois dirá que são seis. E a câmara a segue pelos quartos da casa, sem corte algum. O penúltimo a ser acordado é o marido. No rápido diálogo entre ele e a mulher, em que ele reclama que ela está o incomodando desde as 5 horas da manhã e ela o informa de que já são quase 6, e ele reclama por ela não tê-lo chamado mais cedo, já ficamos sabendo como é a vida daquele casal.
Em um único plano, uma única tomada, Scola e seus co-roteiristas definem a personalidade de Antonietta. É a mulher escrava, a trabalhadora braçal, a parideira, aquela criação clássica das sociedades machistas – a mulher que obedece sempre ao marido, que faz tudo o que ele manda, que não tem vida ou vontade próprias.
Acontece, por mero acaso, de Antonietta ser uma mulher bonita. Mas os maquiladores, o figurinista, o diretor Scola e a própria Sophia Loren fizeram muito bem feito aquele trabalho de desglamourizar a atriz, a estrela linda, o monstro sagrado do cinema italiano; Antonietta nasceu bela, mas a vida a maltratou – é uma mulher cuja beleza foi enevoada pelo dia-a-dia de serva da casa.
Durante uns cinco minutos, acompanhamos a manhã da família numerosa. Todos estão se aprontando para comparecer à grande cerimônia, o encontro dos dois líderes dos países aliados. Vemos que o marido de Antonietta é um fascista de carteirinha, e toda a filharada é composta de aprendizes de fascistas.
Como cordeirinhos, todos vão aplaudir os ditadores
Numa seqüência também antológica, vemos todos os moradores do conjunto de prédios descendo de seus apartamentos à mesma hora, para irem todos, como cordeirinhos, como manda o manual das ditaduras, aplaudir seu líder máximo.
Só Antonietta fica em casa. Em todo o conjunto de prédios, ficam só Antonietta, a zeladora e um sujeito que mora sozinho em um apartamento do outro lado do conjunto, janela diante da janela do apartamento de Antonietta. O sujeito é Gabriele – o personagem de Marcello Mastroianni.
Scola e seus co-roteiristas Maurizio Costanzo e Ruggero Maccari escolheram, para fazer com que os destinos de Antonietta e Gabriele se cruzassem, a figura de um papagaio. O papagaio de Antonietta se aproveita do momento em que a dona abre a portinha da gaiola para dar comida e foge. Vai parar do outro lado do pátio, junto da janela do apartamento em que Gabriele endereça um grande número de envelopes, numa mesa em que há um revólver. Gabriele, o espectador percebe, está prestes a usar o revólver contra si próprio – mas nisso toca a campainha; Antonietta, a vizinha desconhecida, explica que seu papagaio está junto da janela dele.
Estamos aqui com uns 15 minutos de filme, e vamos começar a ver o relacionamento que se desenvolverá entre aquela mulher cansada, frustrada, sem brilho, sem vida própria, e aquele homem, ao longo de um dia inteiro em que os aparelhos de rádio transmitem todos os detalhes da festa de reunião dos dois ditadores.
Diversas sinopses revelam fatos que o filme só explicitará quando já estiver avançado em sua metade final. Até a caixinha do DVD dá os spoilers. Acho isso um crime. Não sei se alguém que ainda não viu Um Dia Muito Especial vai ler esta anotação – mas, mesmo assim, não vou fazer a indignidade de dar informações que Scola leva mais de uma hora para entregar.
Um cineasta apaixonado pelo cinema e pelos grandes afrescos
Scola, um dos maiores cineastas da Itália, esse país que tem uma das mais brilhantes cinematografias do mundo, adora o cinema, os filmes – e tem uma especial paixão por grandes afrescos, filmes que contam histórias que avançam por várias décadas, a Grande História atrás, emoldurando a história dos seus personagens. Nós que nos Amávamos Tanto, de 1975, retrata a Itália desde a Segunda Guerra até aqueles meados dos anos 70. O Baile, de 1983, retrata a vida na França ao longo de quase todo o século XX. Em A Família, de 1987, vemos a história de uma grande família ao longo de várias décadas.
É fascinante ver como aqui ele optou pelo inverso: concentra toda a ação em um único dia, una giornata particolare, um dia muito especial tanto na Grande História quanto na história desses dois personagens afundados em sua profunda solidão.
Em Nós que nos Amávamos Tanto, ao retratar a Itália entre os anos 40 e 70, através das histórias de três homens que amam a mesma mulher, Scola faz, também, um inventário do próprio cinema italiano, do neo-realismo do imediato pós-guerra até a época em que foi feito o filme. Embora não use o nome do colega de profissão, cita o estilo de Antonioni, o cineasta que começou no neo-realismo e depois de concentrou na dificuldade de comunicação entre pessoas da burguesia. Cita Fellini com todas as letras, ao colocar seus personagens participando da filmagem da famosíssima cena em que Anita Ekberg entra na Fontana di Trevi, de A Doce Vida, e não só cita Vittorio De Sica como coloca o próprio cineasta para participar da história.
Ao reunir Sophia Loren e Marcello Mastroianni num conjunto habitacional de Roma, Scola estava também, de maneira óbvia, fazendo uma citação do cinema italiano. A maior estrela e o maior astro italianos dos anos 60 até os 80 já haviam trabalhado juntos em diversos filmes marcantes, de grande sucesso. É óbvio que, ao ver Um Dia Muito Especial, qualquer espectador italiano – ou brasileiro, ou australiano, ou egípcio, ou o que for – se lembraria do casal. Eles contracenaram em Casamento à Italiana, de 1964, de De Sica, nos três episódios de Ontem, Hoje, Amanhã, do mesmo ano e do mesmo De Sica, em Os Girassóis da Rússia, de 1970, também de De Sica, em A Mulher do Padre, de 1971, de Dino Risi.
A seqüência de Ontem, Hoje, Amanhã em que Sophia faz um strip-tease diante de um entusiasmado Mastroianni é uma das mais antológicas do cinema italiano.
E só por isso, por reunir os dois grandes atores, os dois monstros sagrados, neste filme, por estar assim citando obras importantes do cinema italiano, já seria de se aplaudir Um Dia Muito Especial.
Sophia e Mastroianni estão, aqui, em papéis bem diferentes dos que foram mais usuais em suas carreiras. Sophia fez muitas mulheres simples, mulheres do povo – mas sua beleza extraordinária sempre foi realçada, enriquecida, glamourizada. Aqui, é o contrário: ela passou, como eu até já disse, por um duro processo de desglamourização; está bem mais magra do que em outros filmes; está absolutamente diferente daquela Sophia bastantosa (meu Deus do céu e também da terra, e põe bastantosa nisso!) da cena do strip-tease de Ontem, Hoje, Amanhã. E Mastroianni, em outro caso de escolha de papel oposto ao mais comum, está a anos-luz do bonitão charmoso, conquistador irresistível, de A Doce Vida ou Oito e Meio, para citar apenas dois de seus muitos filmes.
Estão brilhantes, Sophia e Mastroianni, como os pobres, solitários, sofridos, doídos personagens de Um Dia Muito Especial.
E Scola, esperto, inteligente, aproveitou ao máximo o fato de estar contando uma história em que os dois são os protagonistas, e todos os demais atores aparecem pouquíssimo. Em quase todas as tomadas em que Antonietta e Gabriele estão juntos, a câmara de Scola focaliza os dois ao mesmo tempo.
É um grande prazer, para qualquer pessoa que goste de cinema, ver, na mesma tomada, Sophia Loren e Marcello Mastroianni.
Uma brutal condenação do povo italiano por ter seguido Mussolini
Marcello foi indicado ao Oscar de melhor ator, e o filme foi um dos cinco indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Teve as duas mesmas indicações para o Globo de Ouro, e levou o prêmio de melhor filme estrangeiro. Na França, levou o César de filme estrangeiro e participou da mostra competitiva de Cannes. Na Itália, levou o David de Donatello de melhor direção e melhor atriz.
Leonard Maltin dá 2.5 estrelas e, em duas linhas, faz o spoiler, conta o que Scola leva mais de uma hora para dizer.
Pauline Kael fala da beleza de Sophia: “Sophia Loren, sem cosméticos visíveis, usa um vestido caseiro desmazelado. Mas tendo como produtor o marido e Pasqualino de Santis como o cameraman iluminador, quem precisa de maquilagem e roupas bonitas? Ela nunca esteve mais deslumbrante ou deu uma interpretação tipo grande dama com tão completo domínio. Este filme é perfeitamente dosado para sua pontinha de coragem: grandes astros interpretando papéis não característicos.”
Ahá: eu ainda não tinha lido isso quando falei exatamente a mesma coisa, alguns parágrafos acima.
Aí Pauline Kael entrega o spoiler, e eu pulo o trecho. E ela prossegue:
“A humilhação dos dois forma uma atração mútua durante algumas horas ao percebermos que a sociedade os tratou com injusta crueldade. É realismo em moldura dourada. Este é um extenuante exercício de Ettore Scola num estilo que se poderia chamar de imprudência com finura.”
Em Off-Hollywood Movies, Richard Skorman, que dá para o filme 5 estrelas, a maior cotação, diz: “A direção de Scola é brilhante, captando emoções sutis em praticamente cada cena, ao mesmo tempo em que brutalmente acusa os italianos por terem seguido cegamente Mussolini e o fascismo. Até a trilha sonora de A Special Day, que consiste na sua maior parte da narração da cerimônia de que participam Hitler e Mussolini, serve como um fascinante documento histórico, ao mesmo tempo acentuando a repressão política e pessoal sobre as vidas de Gabriele e Antonietta.”
Ótima observação, essa: sim, o filme acusa brutalmente o povo italiano por ter seguido Mussolini e o fascismo. Esse é o pano de fundo de todo o filme. Um único personagem do filme não compactua com aquele ufanismo imbecil, babante – e os Estados totalitários não admitem contestação alguma, como veremos mais uma vez confirmado no tristíssimo final desta narrativa brilhante.
Um Dia Muito Especial/Una Giornata Particolare
De Ettore Scola, Itália-Canadá, 1977
Com Sophia Loren (Antonietta), Marcello Mastroianni (Gabriele)
Argumento e roteiro Ettore Scola, Maurizio Costanzo e Ruggero Maccari
Fotografia Pasqualino De Santis
Música Armando Trovajoli
Montagem Raimondo Crociani
Produção Carlo Ponti, Canafox Films
Cor, 105 min
****
Título nos EUA: A Special Day
Awards for - PRÊMIOS
Um Dia Muito Especial (1977) Una giornata particolare (original title)
Academy Awards, USA Year Result Award Category/Recipient(s) 1978 Nominated Oscar Best Actor in a Leading Role
Marcello Mastroianni
Best Foreign Language Film
ItalyCannes Film Festival Year Result Award Category/Recipient(s) 1977 Nominated Palme d'Or Ettore Scola
César Awards, France Year Result Award Category/Recipient(s) 1978 Won César Best Foreign Film (Meilleur film étranger)
Ettore Scola
David di Donatello Awards Year Result Award Category/Recipient(s) 1978 Won David Best Actress (Migliore Attrice)
Sophia Loren
Tied with Mariangela Melato for Il gatto (1977).Best Director (Migliore Regia)
Ettore Scola
Golden Globes, Italy Year Result Award Category/Recipient(s) 1977 Won Golden Globe Best Actor (Migliore Attore)
Marcello Mastroianni
Best Actress (Migliore Attrice)
Sophia Loren
Best Film (Miglior Film)
Ettore Scola
Golden Globes, USA Year Result Award Category/Recipient(s) 1978 Won Golden Globe Best Foreign Film
ItalyNominated Golden Globe Best Motion Picture Actor - Drama
Marcello Mastroianni
Italian National Syndicate of Film Journalists Year Result Award Category/Recipient(s) 1978 Won Silver Ribbon Best Actress (Migliore Attrice Protagonista)
Sophia Loren
Best Score (Migliore Musica)
Armando Trovajoli
Best Screenplay (Migliore Sceneggiatura)
Maurizio Costanzo
Ruggero Maccari
Ettore Scola
National Board of Review, USA Year Result Award Category/Recipient(s) 1977 Won NBR Award Top Foreign Films
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